Nesta segunda-feira (14) completam-se 45 anos do episódio mais emblemático da história recente da devoção nazarena na Vigia: o “achado” da imagem de Nossa Senhora de Nazaré, que foi roubada no dia 10 de fevereiro de 1977. Essa história não é lenda, como a do achado da imagem no mangue do Tujal, que recheia a crônica do Círio da Vigia – uma versão local do “achado” da imagem, em Belém por Plácido José de Sousa. E lembra ainda a lenda do sumiço da Santa da Capela do Palácio do governo, em Belém. No caso da Vigia, a Santa “fugiu” das mãos dos seus algozes, dois ladrões que foram presos, juntamente com o mandante do roubo e outros envolvidos no rumoroso caso, que é celebrado em Vigia, nesta segunda-feira, com feriado municipal.
Até hoje lembrado com fervor, o roubo da imagem da padroeira da Vigia, juntamente com a de São Luiz Gonzaga, causou comoção coletiva e mudou a rotina da cidade naquele ano: os bailes de pré-carnaval foram cancelados; missas se sucederam; o comércio fechou; muita lágrima foi derramada. Talvez nunca se tenha visto mobilização tão grandiosa da população – independente de credo – em veneração à Virgem de Nazaré. O vigário, Manfredo Konossala, e até o bispo, D. Alberto Ramos, ficaram impressionados com a enorme demonstração de fé.
1977. 10 de fevereiro. Quinta-feira. Quando a notícia do roubo da imagem da Santa do Círio se espalhou, a população acorreu à Igreja da Mãe de Deus. Desde os primeiros momentos da confirmação do episódio, até à manhã do dia 14, a matriz manteve-se lotada. Não há notícia de vigília tão longa. A missa de ação de graças, iniciada na madrugada, foi o ponto culminante do “círio extraordinário” que reconduziu a imagem da Santa ao seu nicho, depois e ter sido “achada” em Marituba. O povo estava na rua desde o fim da noite de domingo, aguardando o desfecho do caso.
“TODO O POVO FOI ÀS RUAS PARA RECEBER SUA SANTA”. Essa foi a manchete do jornal O Liberal daquela segunda-feira. E o repórter não economizou: “A Vigia, ontem (domingo, 13), era uma cidade triste. Uma população angustiada, e profundamente desolada, aguardava, entre a apatia que se manifestava nos menores gestos, e a esperança, que a Santa, a milagrosa imagem da Nossa Senhora de Nazaré, voltasse, para a alegria de todos que se habituaram a vê-la, a amá-la, a crer nela”.
O roubo foi o segundo episódio dramático que envolveu a imagem de Nossa Senhora de Nazaré da Vigia, No dia 22 de setembro de 1945, um sábado, véspera do encerramento da Festividade do Círio, um curto-circuito provocou um incêndio no andor da imagem, dentro da igreja, debelado por um devoto que jogou seu paletó sobre o andor. A imagem ficou chamuscada.
Mas nem esse incêndio foi parecido com o roubo da santinha, em 1977, e da imagem de São Luiz de Gonzaga. A imagem da padroeira é de “roca” (estrutura de madeira que sustenta o manto, os membros superiores e a cabeça do santo), uma técnica secular dos santeiros.
Apesar das circunstâncias em que foi “achada”, a frágil imagem resistiu à sanha dos adjetivados “sacrílegos ladrões”. São Luiz de Gonzaga era de gesso e sucumbiu. Conta a crônica, e os registros dos jornais confirmam, os ladrões tentaram destruir a imagem da santa ao constarem que haviam cometido um crime imperdoável. Meteram-se numa enrascada dos infernos e foram presos.
João de Deus Pereira – o “João Bragança”, já falecido – e José Ribamar foram os ladrões que na madrugada chuvosa daquela quinta-feira arrombaram a Igreja da Mãe de Deus. À noite daquele dia, o fato religioso-policial era notícia na TV Marajoara, em Belém. No sábado, 12, o roubo ganhou cobertura nacional no Jornal Hoje, da Rede Globo. A matéria do jornalista Nélio Palheta, que chefiava o jornalismo da filiada local da rede, a TV Liberal, rendeu também uma matéria no Fantástico.
A Vigia se mobilizou para prender os ladrões e trazer a imagem de volta. Se fosse uma ficção literária, o acontecimento religioso-policial seria história recheada de realismo fantástico com muitos personagens: ladrões e simples suspeitos; policiais, comerciantes, traficantes de arte sacra, religiosos, políticos e devotos de Nossa Senhora de Nazaré.
Ategildo Sarmento, então vizinho à Igreja, foi um dos que se empenhou para desvendar o roubo; ele mobilizou o deputado Flávio Cezar Franco (já falecido); traçou estratégias e deu pistas à polícia, depois de investigar por conta própria, ajudado pelo taxista Oswaldo Moraes, pelo Comissário de Polícia da Vigia – um evangélico chamado Escolástico - e mais dois ou três colaboradores: um radialista chamado “Bico”, outro taxista, o “Liberal” (que abasteceu o táxi que levou os ladrões a Belém). Gildo foi ameaçado de prisão, acusado de “atrapalhar” a polícia, incomodada pela investigação paralela.
Passados os dois primeiros dias sem sucesso da polícia, as pistas começaram a ficar claras com o depoimento do taxista Antônio Monte Silva, suspeito de integrar a quadrilha. Foi ele quem conduziu a Belém os dois homens que, na madrugada chuvosa do dia 10, o contrataram para uma corrida. No dia 11, por conta própria, ele foi à polícia contar que suspeitava dos dois homens que deixara na entrada da Rua Celso Malcher, no Bairro da Cremação, na capital. Eles tinham na bagagem dois volumes esquisitos, embarcados na Vila Nova, um bairro periférico de Vigia; a esposa de “João Bragança”, chamada Verônica, foi quem deu as informações mais relevantes sobre o paradeiro das imagens.
A história foi recheada de versões e pistas falsas – como toda e boa história policial; diversas pessoas foram presas sem maiores consequências. A pista do taxista permitiu aos “investigadores devotos” se adiantarem à polícia nas investigações. A polícia chegou às seguintes pessoas: Cesário Corrêa dos Santos, José Ribamar dos Santos (filho de Cesário), Maria da Glória Costa – presos em Bragança; João de Deus Pereira Ribeiro (“João Bragança”), Nissin Boadana e Armândio Silva Ferreira.
“Bragança” e José Ribamar perpetraram o roubo; Boadana, um famoso comerciante de antiguidades em Belém, bem conhecido da Polícia, foi acusado de encomendar as imagens a Cesário Corrêa, que arregimentou os dois larápios.
Personagem cuja história pareceu mirabolante foi Maria Facho Monteiro, residente em Belém, presa em Santo Antônio do Tauá; ela contou que acompanhou a dupla de ladrões até àquela cidade; ela ficou aguardando eles retornarem da Vigia, onde teriam ido “fazer um trabalho”. Foram presos também: Jorge Natalino Barbosa e Manoel Setembrino da Silva Miranda. Cesário, a filha Glória, e José Ribamar foram presos em Bragança; João de Deus foi alcançado pela polícia em Marituba; Armândio e Nissim Boadana foram presos em Belém.
O caso foi encerrado com essas prisões, mas, a bem da verdade, foi o grupo de “investigadores” da Vigia que chegou a João de Deus, e em Marituba achou a imagem da Santa; Ategildo orientou que fosse entregue ao deputado Flávio Cezar Franco, que a levou à Central de Polícia, em Belém.
Na Vigia estava começando mais um capítulo da história: com a confirmação da prisão dos ladrões e dos agenciadores do roubo, e o “achado” das imagens em Marituba, a cidade se preparou para receber a imagem da padroeira: já no fim da noite do dia 13, domingo, bandas de música foram às ruas; a berlinda da Santa foi preparada e não faltaram foguetes. E assim aconteceu o Círio extraordinário.
A imagem chegou a Vigia às três da madrugada. A Igreja da mãe de Deus e o largo foram pequenos para a multidão. A missa em ação de graças, às cinco da manhã de segunda-feira, reteve o povo na matriz até o amanhecer, num clima de fervor que nem no Círio oficial havia sido visto. A comoção dos quatro dias anteriores virou regozijo de fé, devoção, veneração. E ninguém duvidou que fora um milagre a santa não ter sido queimada, pois uma tempestade que desabou sobre Marituba impediu que João de Deus fizesse a fogueira e consumasse o sacrilégio de queimar a imagem – contou aos repórteres e à Polícia Verônica Ribeiro, mulher de João de Deus. Sem sucesso com a fogueira, João descartou a imagem em frente à casa de Jorge Granhen, em Marituba, que a entregou à equipe de vigienses investigadores.
Sem os cachos alourados e exposta na Central de Polícia, enquanto era providenciado o traslado para Vigia, a imagem parecia uma figura insólita; quando chegou à cidade já havia sido providenciada uma nova cabeleira. Mais insólita foi a situação de total destruição da imagem de São Luiz de Gonzaga, que Boadana acreditava ser de madeira. Era de gesso. A coroa de prata e um cordão de ouro que a Santa ostentava – objetos de valor real – foram também recuperados das mãos de João de Deus e devolvidos à Paróquia.
Dias depois, o Arcebispo de Belém, D. Alberto Ramos, que durante a semana do roubo estava em São Paulo, na Assembleia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), celebrou na Vigia uma missa solene e anunciou que pediria ao Papa Paulo VI a concessão da Coroa Cardinalícia – uma homenagem exclusivíssima da Santa Sé – à padroeira da Vigia. E o vigário anunciou que perdoava os ladrões.
Os dias seguintes continuaram sendo vividos em Vigia como se todo mundo tivesse saído de um pesadelo. Mas a tensão continuou. À noite do dia 15, reagindo a uma manifestação estapafúrdia do missionário evangélico Simão Simoura, que dirigia uma igreja chamada “Prece Poderosa”. Ele cometeu o impropério de dizer que a Igreja da Mãe de Deus era o Inferno. O barracão da sua igreja não amanheceu de pé. E foi preciso a polícia intervir para evitar que um grupo de católicos exaltados cometesse atos mais graves, além de destruir o templo.
Até hoje, o dia 14 de fevereiro, é feriado municipal na Vigia, decretado imediatamente pela Câmara de Vereadores, em comum acordo com o prefeito José Ildone Soeiro, para que nunca mais a Vigia se esquecesse do lamentável episódio.
*Sobre o autor: Nélio Palheta é jornalista e Secretário de Cultura de Vigia de Nazaré,
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