Já faz quase dois anos que a AGE (Auditoria Geral do Estado), descobriu um rombo de R$ 1 bilhão no Programa Asfalto na Cidade, criado no governo Jatene. Na época, o então auditor geral Giussepp Mendes disse ter ficado espantado com o pagamento de uma obra quatro meses antes da assinatura do contrato para que fosse realizada. “A legislação é clara: o Poder Público só pode pagar por obras e serviços depois que foram concluídos e conferidos, para ver se estão de acordo com as exigências contratuais. Além disso, quando começamos a investigar o caso, não esperávamos encontrar tantas irregularidades”, afirma o ex-auditor geral. Mas até hoje as investigações não foram concluídas e nem se sabe quando essa montanha de dinheiro voltará ao erário público.
O Asfalto na Cidade é um dos maiores escândalos da história do Pará. E isso não apenas pelo volume de dinheiro envolvido, mas, também, pela profusão de irregularidades. Há de tudo: fraudes licitatórias, beneficiamento de empresas com pagamentos irregulares, suspeitas de corrupção e de uso eleitoreiro dos serviços, obras inacabadas, mal executadas ou que foram simplesmente abandonadas. E há até mesmo “asfalto fantasma”: pavimentações que foram pagas e consideradas realizadas, mas das quais não há qualquer documento que comprove a execução, ou até asfalto que as empresas confessaram que não fizeram, apesar de terem recebido o dinheiro.
Nos cálculos dos técnicos da Auditoria Geral do Estado (AGE), só o “asfalto fantasma” atingiu mais de 82 km (ou mais que a distância entre Belém e o município de Castanhal) e consumiu mais de R$ 100 milhões, em valores atualizados.
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“Nós encontramos inúmeras fraudes nesse programa. Um exemplo são os serviços de má qualidade, para baratear as obras e aumentar a lucratividade das empresas. A Sedop (a Secretaria Estadual de Obras, a responsável pelo programa) também percebeu isso, durante a fiscalização, para atestar as notas fiscais. Mas preferiu fazer de conta que não viu, o que atrai a responsabilidade para os gestores daquela secretaria, como os secretários da época, e para os fiscais dos contratos”, observa Giussepp.
Outro fato que surgiu durante a investigação é o relato de um empresário sobre a “coação” que teria sofrido, por parte de um secretário da Sedop, através de dois assessores, para que aceitasse uma fraude na licitação que ganhara, de forma a beneficiar uma empresa que já estava “escolhida” para aquela obra.
O Asfalto na Cidade foi criado por Jatene em 2012, ano de eleições municipais, e sempre levantou suspeitas de utilização eleitoreira. No entanto, nunca se imaginou a extensão de suas irregularidades. Mas, em 2018, o volume de dinheiro torrado pelo programa foi tão impressionante, que acabou por colocá-lo no olho de um furacão: os gastos atingiram mais de R$ 369 milhões (ou quase R$ 408 milhões, em valores atualizados pelo IPCA-E de março último), superando tudo o que havia consumido nos quatro anos anteriores. Várias reportagens do DIÁRIO mostraram a farra de asfalto nunca vistaem um ano eleitoral.
Com isso, ainda naquele ano, o Ministério Público Estadual (MP-PA) abriu uma investigação, a pedido do MDB, que também ajuizou uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE), no Tribunal Regional Eleitoral (TRE). Mas foi apenas depois da mudança de governo que se começou a descobrir que o uso eleitoreiro do Asfalto na Cidade era apenas a ponta de um iceberg.
Em janeiro de 2019, em decorrência da investigação instaurada a partir da AIJE do MDB, a procuradora regional eleitoral Nayana Fadul da Silva pediu a inelegibilidade, por 8 anos, de Jatene e do candidato dele ao Governo, nas eleições de 2018, Márcio Miranda; do ex-secretário da Sedop, Pedro Abílio Torres do Carmo; e de Izabela Jatene, filha de Jatene, que foi titular da Secretaria Extraordinária de Municípios Sustentáveis (Semsu).
Segundo a procuradora, houve abuso de poder político e econômico naquelas eleições, com o uso do Asfalto na Cidade, em favor da candidatura de Márcio Miranda. Um dos primeiros indícios de irregularidade encontrado foi que os convênios entre a Sedop e as prefeituras, para permitir a execução dessas obras, nem sequer existiam, embora tenha sido flagrada a simulação da assinatura de vários deles, durante a campanha eleitoral.
Operação cumpriu mandados em endereços ligados às construtoras
O escândalo, que deixou um rastro de dezenas de obras inacabadas ou de má qualidade, em vários municípios, levou a AGE a realizar acordos com as empresas, para que elas consertassem e acabassem essas pavimentações, de forma a reduzir o prejuízo aos cofres públicos e à população. Em troca, elas puderam voltar a participar de licitações estaduais, das quais haviam sido suspensas.
Também a partir de denúncias da AGE, a Diretoria de Combate à Corrupção (Decor) da Polícia Civil, e o MP-PA abriram investigações sobre o caso. Em abril do ano passado, só o 1º Promotor de Justiça de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa de Belém, Alexandre Marcus Tourinho, ajuizou cinco Ações Civis Públicas (ACPs) de improbidade administrativas, que somaram R$ 237 milhões em pedidos de devolução de recursos ao erário, além de R$ 70 milhões em pedidos de indenizações ao Estado, por danos morais.
Entre os acusados, dois ex-secretários de Obras de Jatene (Noemia Jacob e Pedro Abílio Torres do Carmo), 9 empresas, mais de 20 empresários e os engenheiros José Bernardo Pinho e Raimundo Maria Miranda de Almeida.
As várias ações ajuizadas pelo MP-PA já somam cerca de R$ 600 milhões, em valores não corrigidos, ou mais de R$ 1 bilhão, com a atualização monetária dos contratos. Além disso, já foram obtidos bloqueios de bens e a quebra dos sigilos bancários e fiscais de vários dos supostos envolvidos nas irregularidades. Mas as investigações ainda prosseguem: em fevereiro deste ano, a Polícia Civil realizou mais uma fase da Operação Cratera, para cumprir mandados judiciais de busca e apreensão em endereços ligados às construtoras.
Além de fraudes licitatórias, as suspeitas envolvem peculato, associação criminosa e corrupção ativa e passiva. Segundo o depoimento do engenheiro José Bernardo Pinho, as fraudes ocorreram nas administrações de Noemia Jacob e Pedro Abílio. Agora, é esperar pelas decisões da Justiça.
Descompasso
Outro sinal de irregularidade foi o descompasso entre os pagamentos às empresas contratadas, para realizar essas obras, e a real execução dos serviços. Em 2015, por exemplo, a construtora Leal Junior foi contratada pela Sedop para executar 70 km de pavimentação, em 9 municípios da região do Lago de Tucuruí, e recebeu 88% do valor do contrato (que era de R$ 18,5 milhões) mas só concluiu 30% dos serviços. Além disso, o novo contrato da construtora, em 2018, ficou em R$ 38,7 milhões (ou R$ 109% a mais), embora também previsse 70 km de pavimentação, em 7 municípios da mesma região. Essas descobertas iniciais foram encaminhadas pela AGE ao Ministério Público de Contas (MPC), que, em fevereiro de 2019, protocolou uma Representação no Tribunal de Contas do Estado (TCE) contra os ex-secretários da Sedop. Segundo o procurador de Contas Guilherme da Costa Sperry, as descobertas da AGE e as investigações do MPC apontavam “fortes indícios de grave violação à norma legal” e de possível dano aos cofres públicos.
Pagamento feito por pavimentações não realizadas
No entanto, ainda em 2019, o caso tomaria proporções muito mais alarmantes. Em agosto daquele ano, em depoimento à AGE, a construtora Leal Junior admitiu que recebeu pagamentos da Sedop por 15 km de pavimentações que não foram realizadas, além de serviços executados com vários vícios construtivos. Segundo técnicos da AGE, só o asfalto fantasma teria causado um prejuízo de quase R$ 20 milhões ao erário. No entanto, a empresa alegou que desconhecia a má qualidade das obras e até a inexecução desses 15 km, já que havia subcontratado outra empresa, com a qual mantinha uma “relação de confiança”. No mês seguinte, a construtora Lorenzoni também abriu o jogo: ela disse que foi “coagida” pela Sedop , em 2014, a aceitar uma fraude licitatória que pode ter lesado o erário em mais de R$ 21 milhões. Segundo ela, assessores da secretaria lhe comunicaram que, “por ordem de cima”, teria de ceder a empresas já escolhidas a metade do contrato que ganhara.
A Lorenzoni apontou os engenheiros José Bernardo Macedo Pinho e Raimundo Maria Miranda de Almeida, ex-coordenadores do Asfalto na Cidade, como responsáveis pela suposta fraude. Mas também disse acreditar que a “ordem de cima” veio do então secretário de Obras, Pedro Abílio Torres do Carmo. Os dois engenheiros ocupavam cargos de confiança que os vinculavam diretamente ao então secretário. José Bernardo, que foi assessor especial de Jatene, entre 2011 e 2012, também foi assessor de convênios da Secretaria de Transportes (Setran), no primeiro governo de Jatene, entre 2003 e 2006.
Na época, o secretário de Transportes era Pedro Abílio. Em abril de 2019, em depoimento à AGE, José Bernardo teria confessado que, por “ordens superiores”, fraudava a medição dos serviços de empresas contratadas para o programa. O fato, segundo a AGE, teria permitido até o pagamento de pavimentações inexistentes.
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