
Diante da privação de alimentos ou de uma alimentação insuficiente, o corpo humano utiliza mecanismos de sobrevivência para preservar suas funções vitais. Essa resposta, no entanto, desencadeia alterações cognitivas e metabólicas que, em casos extremos, podem ser fatais.
Quando se trata de crianças, as consequências são ainda mais graves: aquelas que sobrevivem à inanição severa apresentam efeitos persistentes no crescimento e no desenvolvimento funcional ao longo da vida.
Imagens da Faixa de Gaza que mostram crianças esqueléticas e cidadãos desesperados em busca de comida, com panelas vazias nas mãos, têm circulado todo o mundo nos últimos dias.
Projeção da Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar, iniciativa apoiada pela ONU, aponta que todos os 2,3 milhões de habitantes no território estão em risco de insegurança alimentar e que ao menos 470 mil sofrem com "níveis catastróficos" de fome.
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Os números são incertos e contestados, mas o Ministério da Saúde local, controlado pela organização terrorista Hamas, fala em 127 mortes por fome, incluindo 85 crianças, desde o início da guerra, em outubro de 2023. O Unicef aponta também que 5.000 crianças foram tratadas por desnutrição em um período de duas semanas neste mês de julho.
Pessoas saudáveis obtêm energia a partir da conversão de carboidratos em glicose, que é processada no fígado e distribuída para todo o corpo, principalmente para o cérebro. Após esgotar suas reservas de glicose, o organismo começa a obter energia da gordura. Sem alimentos, porém, o corpo recorre aos músculos para obter energia. Em crianças esse processo ocorre mais rapidamente, visto que elas têm menos reservas.
O endocrinologista Fábio Trujilho, presidente da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica), explica que "o tempo máximo estimado de sobrevivência humana sem alimento, desde que haja disponibilidade de água, é geralmente de até 60 dias, conforme observado em relatos históricos e revisões recentes".
Ele cita o estudo Malnutrition in Adults (desnutrição em adultos), publicado em 2024 na revista científica The New England Journal of Medicine.
A médica nutróloga Marcella Garcez, mestre em ciências da saúde e especialista em metabolismo e nutrição, acrescenta que o tempo estimado de sobrevivência sem alimento depende ainda de fatores como estado nutricional prévio, reservas de gordura e músculo, hidratação, presença de doenças crônicas e níveis de eletrólitos, bem como idade.
A inanição prolongada compromete o organismo de forma integrada, a começar pelo sistema digestivo, que sofre atrofia, reduzindo a capacidade de absorção e de produção de enzimas e o funcionamento do intestino. Quando a a alimentação é retomada, a comida precisa ser ingerida lenta e gradualmente.
O sistema endócrino também é impactado pela queda dos hormônios da tireoide T3 e T4, que regulam o metabolismo e as funções cardiorrenais, levando à redução da força cardíaca, piora da circulação, atrofia do coração, declínio da função renal e comprometimento da produção energética celular, favorecendo a disfunção de múltiplos órgãos e aumentando significativamente o risco de morte em casos graves.
O QUE ACONTECE COM UM CORPO SEM COMIDA
1. Até 24 horas sem comer: uso das reservas rápidas
Nas primeiras horas sem alimento, o corpo recorre ao glicogênio, uma forma de glicose armazenada no fígado, para manter os níveis de açúcar no sangue.
2. De 1 a 3 dias: produção de glicose pelo organismo
Depois que o glicogênio se esgota, o organismo precisa encontrar outra fonte de glicose e passa a produzir esse açúcar a partir de aminoácidos (vindos dos músculos), de lactato e de glicerol. Esse processo é chamado de gliconeogênese.
3. De 3 a 14 dias: uso de gordura
Com a falta prolongada de glicose, o corpo busca uma alternativa mais eficiente: a gordura. O fígado começa a transformar ácidos graxos em corpos cetônicos, que fornecem energia para diversos órgãos e ajudam a preservar a massa muscular.
4. Após 2 semanas sem comer: predominância da gordura
O organismo se adapta ao jejum. O cérebro, que antes dependia quase exclusivamente da glicose, passa a usar corpos cetônicos como combustível. Isso ajuda a poupar os músculos e torna a gordura a principal fonte de energia.
5. Falência dos órgãos
Se o jejum continua por tempo demais, o corpo entra em colapso. As reservas de gordura e proteína se esgotam, e o organismo começa a consumir tecidos essenciais para tentar sobreviver. É o estágio mais crítico, com risco de morte.
IMPACTO DA FOME NAS CRIANÇAS
O endocrinologista Fábio Trujilho afirma que crianças que sobrevivem a episódios graves de inanição lidam com consequências duradouras no crescimento e na saúde.
"Estudos demonstram que, mesmo após a recuperação clínica e nutricional imediata, essas crianças mantêm déficits significativos em altura, peso e massa magra, sem evidência de recuperação completa do crescimento linear ao longo de anos."
Após cinco anos, essas crianças continuam a apresentar crescimento inferior ao daquelas que não passaram por essa experiência. A massa magra permanece reduzida, enquanto a gordura corporal pode ser preservada, o que pode causar problemas metabólicos futuros. "Além disso, essas crianças têm maior vulnerabilidade a infecções, recaídas de desnutrição e mortalidade elevada nos anos seguintes ao episódio de inanição grave", acrescenta o especialista.
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"Há evidências de prejuízo funcional, como menor escolaridade, menor renda e menor participação escolar na geração seguinte, sugerindo efeitos intergeracionais", afirma Trujilho com base em estudos como "Efeitos de longo prazo da desnutrição em sobreviventes da fome na infância e seus descendentes: novas evidências da grande fome vietnamita".
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