Qual é a diferença do lugar para fazer um passo de dança? Sempre houve uma disputa acerca do espaço público, e o corpo feminino sempre foi relegado ao âmbito do privado. Não como escolha, mas como um papel social imposto ou como uma ideia de limite a ser dado as mulheres. A viralização da antítese de “Bela, recatada em do lar”, em resposta a uma matéria sobre a primeira-dama em 2016, ilustra esse campo de expectativa enquanto algo violento que restringe a mulher à vida doméstica. Enquanto isso, a dança convoca ao coletivo, seja como participante ou espectador, desde seus primórdios ritualísticos, marcado por batidas de pés no chão na pré-história, passando pelo balé clássico, e toda sorte e forma de bailinhos e festas. Essa ideia se conecta a pensar como um corpo se permite o movimento no espaço público. Então, onde dançar?
A festa, por exemplo, tem seus códigos, e existe a falta disso em anos pandêmicos além de algum movimento ou sede para voltarmos a nos aproximar da produção de um estado de efervescência coletivo. A mulher enquanto sujeito capta as nuances. Por exemplo, por que em determinadas festas nos sentimos mais à vontade para dançar ou nos vestirmos de maneira mais criativa ou sedutora e sem medo?
Esse termômetro é contraditório com a ideia de que festa deveria vir acompanhada de uma suspensão, uma transgressão da normalidade em torno de uma celebração. O ponto é que até mesmo o exagero, a transgressão, ou uma noite fora da normalidade ainda é mais factível a homens em uma ótica patriarcal. Ou, além disso, é voltada para o que satisfaz o masculino. Para completar ainda paira um signo de vítima sobre o feminino, como expectativa e como controle.
A noite ainda é, em muitas perspectivas, o lugar do risco, do perigo, ou a fronteira que as mulheres não deveriam atravessar como sujeitos, apenas como objetos, quase como se fossem o enfeite, ou ainda o produto da festa (marcadamente na lógica heteronormativa em relação a ingressos e bebidas). O esforço mental e corpóreo de se antecipar a todo risco foi nomeado pela filósofa Elsa Dorlin, em seu livro sobre autodefesa, como cuidado negativo. Essa estratégia de medir palavras, atitudes, figurino, tons de voz, adequações, como que num jogo de adivinhação em um tabuleiro de xadrez é incorporada pelas mulheres no que seria uma situação de risco.
É o efeito da violência suportada gerando uma postura cognitiva e emocional negativa, como se o indivíduo submetido a isso estivesse atrelado a essa espera de um golpe, vivendo em uma “inquietude radical”. É o jogo de adivinhação mais exaustivo que jogamos as vezes sem consentir, tentando antecipar intenções do outro a fim de nos protegermos dela.
Penso que ao falar de festa, de dança, de música e de arte, no entanto, quero desguiar para pensar além do sombrio existencial da cultura do estupro como forma de aniquilamento e condução de onde transitar. A antropóloga Adriana Facina, fala no artigo “a sobrevivência do Eros” ao fazer considerações sobre cultura e funk pontua que “sobreviver não é o mero viver”, não se restringe a continuidade de existência biológica, mas algo que escapa normatizações e dicotomias coloniais.
Existe algo mais que foge e coloca não a vida como contrário de morte, mas a vida como contrário de medo. Nesse trânsito retorno a Elsa Dorlin quando ela observa formas de autodefesa de povos escravizados e colonizados e diz que “quem se encontra colonizado permanece à margem do próprio corpo”. O limiar entre a dança e a luta toma o centro nesse pensamento de Dorlin que fala do “efeito paralisante da violência colonial” e da proibição no fim do século XVII, do Código Negro, de aglomerações, assembleias ou reuniões, inclusive festivas, de escravizados. Isso encobriu da noção de perigo qualquer combinação de dança, canto e música, nesse âmbito. Tal qual temos essa ideia híbrida na capoeira, nesse período colonial predominava a ideia de que um passo de dança já ensejava suspeitas de envolvimento com o combate.
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No entanto, Frantz Fanon, relembra do sonho como espaço onde é possível alongar os músculos e viver a rebeldia. Assim Dorlin diz que “o corpo de alguém colonizado só pode ser reanimado por e dentro de uma temporalidade onírica”. Não podemos perder de horizonte o sonho como ferramenta do movimento do corpo. Sonhei com a voz de Paul Preciado, filósofo transgênero e feminista, dizendo "você tem mais ou menos noventa e oito dispositivos de poder sobre o seu corpo, você acabou de passar por apenas um deles que é se perguntar se está enlouquecendo". Essa dúvida de si que vem na voz de Preciado, o recorte de gênero da síndrome do impostor e a fragilidade de nomear a si próprio, passa pela escolha dos passos de dança, roupa ou decisões de vida com intempéries da condição de ser mulher.
Proponho um questionamento sobre o uso do espaço público que se entrelace com o prazer que temos em contato com uma obra de arte. Imaginar o espaço da festa como mobilizador de alegria, principalmente porque o medo não pode ser o afeto mobilizador principal de nossa vida, de nossa existência. Marcada pelo que diz Luiz Antônio Simas “não se faz festa por que a vida é boa, mas pela razão inversa”. Nisso pensar também como os corpos subalternizados, mulheres, LGBT’s e não brancos têm que criar um espaço de outra ordem, de outra subversão para celebrar a alegria e o prazer.
Marieta, Josephine e Pina
Penso em três bailarinas: Marietta Baderna, Josephine Baker e Pina Bausch. A primeira como imigrante no Brasil na segunda metade do século XIX inaugurou um vocábulo que se tornou sinônimo de “situação em que reina a desordem; confusão, bagunça”, seu sobrenome Baderna se tornou uma palavra com essa conotação somente na língua portuguesa Isso se deu no processo de incorporar ritmos e danças africanas como lundu e umbigada, além das festas populares, na apresentação de balé clássico. Aqueles que festejavam essa inovação de Marietta, que lotou os teatros com classe popular e operária, ficaram conhecidos como “baderneiros” pela reação as apresentações com aplausos enérgicos, pés tamborilando o chão e gritos efusivos por seu nome.
A segunda do Estado do Missouri para a Broadway em Nova York, Josephine Baker marcou época, com shows hipnóticos e com a postura política na qual se recusava a se apresentar em locais que não permitiam a entrada do público negro, em período segregacionista estadunidense. Além de dançarina, cantora, e ativista antirracista Josephine foi espiã contra o nazismo, no período que morou na França. Para completar ainda ajudava refugiados e revolucionários, escondendo-os em sua casa ou camuflando-os como parte de sua banda.
A terceira, Pina, ao compartilhar a memória de quando estava em uma visita a ciganos na Grécia, ficou encantada pela frase de uma menina que insistia que dançasse com eles dizendo “dance, dance, senão estamos perdidos. Nesse texto emocionante de Pina Bausch ela coloca que a dança deve ter outra razão além de simples técnica e perícia. Isso porque as linguagens nas artes devem ser reconhecidas como intercambiáveis pois “certas coisas se podem dizer com palavras, e outras, com movimentos”. As três bailarinas compreenderiam o que não sei se estou conseguindo expressar.
Depois penso em todos que dançam e fazem dançar. A pergunta “qual é o lugar da mulher na festa?” surgiu semana passada, em uma oficina de discotecagem em vinil voltada para mulheres ministrada pela DJ Nat Viana e o Andro Baudelaire, em uma parceria da Festa Meta/Esquema (inspirada na obra de Hélio Oiticica) com a Ná figueiredo. Na boca da própria Nat a pergunta fervilhou a cabeça de quem estava lá, e porque uma mulher hesita em estar muitas vezes nesse lugar de curadoria musical, quais são os obstáculos que deixam de legitimar uma mulher no comando desse lugar artístico da diversão. E estar nesse espaço não como objeto, mas como sujeito, curador, detentor de um saber a ser compartilhado coletivamente, a cadenciar o ritmo de um festejo irrompendo o espaço público.
Como diria aquela que foi considerada a mulher mais perigosa da américa, Emma Goldman, “se eu não posso dançar, não é minha revolução”. Toda desobediência é antes de tudo, um exercício de imaginação. O “e se...”, no qual as reticências têm o poder de inversão dos pressupostos, seja de beleza, bondade e limpeza ou que seja erguido na ideia que se tem de uma mulher.
Um corpo que dança pode dançar sua fúria, seu combate, e também uma alegria revolucionária feminista de ser mais do que o programado pelo sistema. Que possamos ter horizonte de uma epidemia de dança reversa da França de 1518, que reverbere em mais vida e não a morte, numa espécie de reencantamento, respeitando muito nossas lágrimas, mas ainda mais nossa risada, como cantaria Gal.
Roberta Amaral Damasceno é fotógrafa, artista visual, advogada e pesquisadora. É ainda mestra em Direitos Humanos, Arte e Sociedade pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ., além de estreante como DJ no fluxo da Pere lá.fm, no domingo (13), no Canto Coworking.
O título original do texto da autora é "Um corpo que dança".
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