Multas bilionárias, programas robustos de compliance, abertura do mercado brasileiro para estrangeiros, mudança de nomes, recuperações judiciais, empreiteiras que diminuíram para um décimo do tamanho que tinham e traumas que persistem até hoje na assinatura de contratos de obras públicas.
Deflagrada há dez anos, a Lava Jato provocou uma revolução no setor de infraestrutura e construção pesada no Brasil. Seus efeitos persistem até hoje, enquanto as grandes empresas voltam à arena pública após assumirem responsabilidade em esquemas de corrupção.
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O retorno mais recente ocorreu na sexta-feira (15), quando empresas dos grupos Andrade Gutierrez e Novonor (ex-Odebrecht) apareceram mais bem posicionadas no leilão de retomada das obras da Refinaria Abreu e Lima um dos pivôs da operação.
As companhias haviam sido reabilitadas em julho do ano passado a disputar contratos da Petrobras, depois de serem vetadas em meio às condenações por crimes de corrupção.
O retorno às obras públicas é considerado crucial para a sobrevivência do setor, avaliam especialistas, uma vez que as empresas têm operado no prejuízo e muitas pediram recuperação judicial (caso da Odebrecht, UTC e OAS) ou até entraram em processo de falência como a Coesa, braço da OAS, que depois teve a falência revertida pela Justiça.
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O faturamento do setor caiu mais de 80%, segundo o Sinicon (Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada-Infraestrutura), enquanto as empresas venderam subsidiárias e grande parte das operações.
A Odebrecht, por exemplo, se desfez da Atvos (biocombustíveis) e Ocyan (óleo e gás) e tenta vender sua parte na Braskem (petroquímica). O grupo resolveu concentrar suas operações na OEC, braço de engenharia da empresa, que terminou 2022 (dado fechado mais recente) com faturamento de R$ 4,7 bilhões. Em 2015, um ano antes de anunciar colaboração com a Lava Jato, a empresa faturou R$ 55,9 bilhões.
A Camargo Corrêa, que virou grupo Mover, vendeu o controle das Alpargatas, dona das Havaianas.
"Ao contrário do que se pensava, as pequenas não se tornaram médias, as médias não se tornaram grandes e as grandes não desapareceram, [mas] diminuíram de tamanho, e muito", diz Claudio Medeiros, presidente do Sinicon.
REVISÃO DE ACORDOS
Em meio a essa crise, sete empreiteiras que fecharam acordos bilionários com a CGU (Controladoria-Geral da União) e não conseguem pagar foram a Brasília nesta semana tentar renegociar as dívidas.
Participaram da reunião com a CGU representantes da Metha e Coesa (OAS), Andrade Gutierrez, Novonor (Odebrecht), Nova Participações (ex-Engevix), Mover (ex-Camargo Corrêa), Braskem e UTC a mudança de nome foi uma prática comum para afastar a crise de reputação pós-Lava Jato.
A maior dívida é da antiga Odebrecht, que pagou R$ 172 milhões de um acordo de R$ 2,7 bilhões fechado em 2018 a empresa afirma, porém, que somando multas da CGU e AGU (Advocacia-Geral da União), pagou R$ 1,1 bilhão em multas para a União.
A antiga OAS foi outra que concordou em pagar quase R$ 2 bilhões cinco anos atrás para a CGU e quitou apenas R$ 4 milhões da dívida.
Em valores corrigidos pela inflação, a CGU calcula que essas empresas devem R$ 11,7 bilhões apenas dos valores acordados com o órgão.
As dívidas são consideradas um dos principais entraves para a retomada das empresas. Elas argumentam que os montantes não fazem mais sentido dada a situação financeira atual das companhias hoje.
Dificulta o fato de que a dívida é reajustada de acordo com a Selic, taxa básica de juros. Em novembro de 2019, por exemplo, quando a OAS fechou o acordo de leniência, a taxa estava em 5%. Hoje, está em 11,25%.
O aperto no caixa das companhias não se dá apenas pela diminuição do volume de obras. As empreiteiras relatam também dificuldades de tomar crédito em instituições bancárias em meio à crise de imagem pela qual essas companhias passam.
"A imagem desse pessoal, que já era péssima, foi para a lama", diz a advogada Virginia Mesquita, sócia do escritório Demarest na área de Infraestrutura e Financiamento de Projetos, que acompanha de perto o setor. "Tem gente que fica até meio assim de falar empreiteira, fala em empresa de construção pesada, né?", brinca.
Com tudo isso, a CGU aceitou receber as empresas para discutir os montantes, com anuência do ministro André Mendonça, que acompanha o caso no STF (Supremo Tribunal Federal).
As negociações devem durar 60 dias e o órgão afirma que vai analisar caso a caso e que as conversas serão individuais.
"Você olha para uma empresa que tem 180 mil empregados, que como grupo fatura R$ 100 bilhões, e calcula uma multa. Mas a empresa, como resultado de todo esse processo, agora tem 13 mil empregados, fatura R$ 5 bilhões. Essas multas que você estabeleceu são realistas? Ou elas vão terminar de destruir a empresa, o que não é do interesse de ninguém?", diz Rafael Mendes, diretor de Integridade e Riscos da Novonor.
A CGU não está disposta a diminuir o valor das multas, no entanto. O que propõe é facilitar o pagamento, sobretudo com o instrumento do prejuízo fiscal, uma compensação que as empresas podem fazer quando têm lucro negativo e mesmo assim pagou determinados impostos.
Nos cálculos de negociadores, porém, esse prejuízo fiscal poderia abater no máximo 20% da dívida no melhor dos casos, de algumas empresas.
Mas, como condição para facilitar os pagamentos, a CGU pretende impor a cobrança de uma série de pontos que constavam nos contratos assinados e que ainda não foram concluídos.
O principal deles seria a implementação de programas de integridade e compliance. Envolvidos no setor citam como exemplo o implementado pela Novonor após processos e exigências do Departamento de Justiça dos EUA, Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento e órgãos brasileiros.
Segundo Mendes, o programa custou R$ 500 milhões desde 2016, entre contratações de auditores externos, consultorias especializadas em contabilidade forense, treinamento de compliance, investigação de terceiros, entre outros.
Os processos implementados incluem programas centralizados de pagamentos e até varreduras nos calendários corporativos de funcionários para identificar reuniões com autoridades que não foram registradas em um sistema criado para monitorar interações de agentes públicos.
"Você pode questionar os métodos da Lava Jato, mas o fato é que forçou essas empresas a repensarem seus métodos de operação", diz Claudio Frischtak, da consultoria Inter.B. "Essas empresas estão agora voltando para o setor público de uma forma bem diferente, com padrões de governança, competência e de obediência à lei e às normas que não existiam antes."
Houve por outro lado empresas que não fecharam acordo de leniência com a CGU, como a Queiroz Galvão (hoje Álya) procurada, a empresa não quis se manifestar.
EMPRESAS ESTRANGEIRAS
Fundos de investimentos e companhias estrangeiras venceram leilões de infraestrutura nos últimos anos, mas as outrora grandes empreiteiras defendem que têm uma expertise para lidar com projetos complexos que as outras não têm.
A Lava Jato chegou a ser descrita como uma "liberalização" para esse setor da economia, diz a advogada Virginia Mesquita, já que as empreiteiras brasileiras faziam pressão para impedir estrangeiros em editais. Os primeiros editais pós-Lava Jato para concessão de aeroportos, por exemplo, tiveram apenas empresas de fora do Brasil como a Zurich (suíça) e a Aena (espanhola), cita.
As empresas reclamam, porém, que companhias arroladas em escândalos em outros países ganharam espaço aqui, como a Acciona que chegou a receber R$ 6,9 bilhões em investimentos do BNDES para a linha 6-laranja do Metrô de São Paulo.
Mesquita afirma que a operação deixou "traumas", entre eles o medo de assinar aditivos aos contratos um dos mecanismos de superfaturamento das obras. "Os contratos com que a gente lida, de concessão e PPP, são de longo prazo. Se você não tiver nenhum aditivo durante a execução, há chance de ter alguma coisa errada, porque o prazo é muito grande", diz.
A Lava Jato coincidiu com a crise econômica de 2015 e a queda no investimento em infraestrutura no país. Se em 2014 o Brasil investiu o equivalente a 2,36% do Produto Interno Bruto em infraestrutura, essa proporção caiu até atingir 1,61% em 2019, o menor ano. Em 2023, fechou em 1,79%, e deve ser 1,87% neste ano, segundo a consultoria Inter.B.
O setor está otimista, porém. Segundo dados da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base, concessões e parcerias público-privadas neste ano devem ter R$ 59,4 bilhões em investimento privado e R$ 72,8 bilhões no ano que vem, considerando projetos de logística, rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e metrô e trens.
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