Era uma tragédia anunciada: um ano antes do incêndio que destruiu parte da Cinemateca Brasileira, na Vila Leopoldina, Zona Oeste de São Paulo, o Ministério Público Federal havia ajuizado ação contra a União após abandono da instituição, motivado, segundo o MPF, por “resistência político-ideológica” da cúpula do governo Bolsonaro. Chamas consumiram galpão da Cinemateca na noite desta quinta-feira (29). Os bombeiros informaram que não houve vítimas e que 17 viaturas foram deslocadas para atender a ocorrência.
No dia 16 de julho de 2020, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com ação para que a União viabilizasse a gestão e a preservação da Cinemateca, diretamente ou por meio de entidade privada, destinando ao órgão o orçamento já previsto para 2020 – de R$ 12,2 milhões.
Em audiência realizada no último dia 20 de julho, o MPF emitiu mais um alerta sobre o risco de incêndio na Cinemateca.
Desde o fim de 2019, a instituição, localizada na capital paulista, está abandonada pelo governo federal, sem receber nenhuma ajuda financeira, depois que o contrato de gestão com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) se encerrou e não foi renovado. O impasse, nas palavras do MPF, foi "fruto de decisão arbitrária do Ministério da Educação, tem colocado em risco obras audiovisuais de valor incalculável”.
Na ação, o MPF pedia que o contrato com a Acerp fosse mantido emergencialmente por um ano, a contar (retroativamente) de 1º de janeiro de 2020, considerando que a sua não renovação contrariou recomendações técnicas da própria administração federal. Durante tratativas em 2019, a associação externou o interesse em continuar à frente da Cinemateca, ao mesmo tempo em que todos os órgãos técnicos do governo que analisaram a questão (na Secretaria Especial de Cultura e nos Ministérios da Economia e da Cidadania) se manifestaram favoravelmente à manutenção da parceria até então vigente.
Contudo, em dezembro, às vésperas de se encerrar o contrato de gestão, o MEC decidiu, de forma unilateral e sem motivo juridicamente admissível, não renovar o documento. A pasta, então ocupada por Abraham Weintraub, era à época a responsável pela contratação, uma vez que a outorga da administração da Cinemateca à Acerp, em 2018, se deu na forma de um termo aditivo de um contrato já existente entre o MEC e a associação.
A própria Secretaria Especial de Cultura informou que foi surpreendida pela interrupção da parceria e a consequente indefinição sobre a gestão da Cinemateca. Para o MPF, houve evidente desvio de finalidade na postura adotada pelo MEC, fruto da resistência político-ideológica do então titular Abraham Weintraub. “É extremamente provável que o único motivo do Ministério da Educação para contrariar os próprios órgãos técnicos federais seria a resistência ideológica, à custa da deterioração do material custodiado pela Cinemateca e do risco crescente de sua destruição”, enfatiza o procurador da República Gustavo Torres Soares, autor da petição.
Como consequência da inexistência de contrato vigente, a Cinemateca não recebeu nenhum recurso federal em 2020, apesar de já haver previsão orçamentária para o repasse de R$ 12,2 milhões. Ainda assim, a Acerp, sem qualquer ajuda financeira da União, vem mantendo, com muita dificuldade, a gestão do órgão, para evitar a destruição e o perdimento do seu acervo.
Risco iminente
Desde 2020, o MPF já alertava para o risco de incêndio na Cinemateca. À época, serviços de segurança, de brigada de incêndio e de manutenção do sistema de refrigeração estavam suspensos e o MPF já alertava para a gravidade da situação, já que era nítido que Cinemateca poderia perder ou ver danificado todo o seu acervo caso ocorresse um corte de energia ou uma falha no ar condicionado.
Os filmes em nitrato de celulose lá armazenados, altamente inflamáveis, podem entrar em combustão espontânea e ocasionar um incêndio, por exemplo. Ao longo de sua história, a instituição sofreu, no mínimo, quatro incêndios, sendo o mais recente em 2016, quando várias obras audiovisuais foram perdidas para sempre. “O conteúdo informacional ali custodiado pode ser perdido completamente pela falta de operacionalização técnica e correto acondicionamento, além da possibilidade de furto e depredação do patrimônio público devido à falta de serviços de segurança e limpeza nas dependências da Cinemateca”, alertava Gustavo Soares.
Patrimônio
Patrimônio histórico-cultural audiovisual do povo brasileiro, a Cinemateca tem como uma de suas funções preservar o registro e a memória do cinema nacional. O órgão possui hoje o maior acervo audiovisual-cinematográfico da América do Sul, com cerca de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema, como fotos, roteiros, cartazes e livros. Além disso, a instituição funciona como espaço de lazer, turismo, convivência, educação e profusão de cultura em geral.
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