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MAR DE GENTE, RIO DE PALAVRAS

Emoção do Círio acende novas histórias na Literatura do Pará

Descubra como o Círio de Nazaré inspira escritores e reflete a rica cultura paraense em suas obras literárias.

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Imagem ilustrativa da notícia Emoção do Círio acende novas histórias na Literatura do Pará camera O Círio de Nazaré é a maior procissão religiosa do mundo. | Foto: Marcelo Souza /Ag.Pará

Há mais de 200 anos, um caboclo da Amazônia, Plácido, encontrou uma pequena imagem de Nossa Senhora de Nazaré na margem do igarapé Murucutu, onde hoje está construída a Basílica Santuário de Nazaré. Este é o começo da história do Círio, que os paraenses conhecem muito bem e se desdobrou em várias ao longo dos séculos na escrita de artistas da Literatura.

Tradicionalmente, o Círio de Nazaré leva às ruas milhões de pesssoas em procissão no segundo domingo de outubro, mas a festividade é maior e inclui outras procissões, como a Trasladação, e o costumeiro almoço depois da romaria principal. Todo o clima diferente da cidade em pelo menos três dias, inspira escritores e artistas na Amazônia.

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O livro “Belém do Grão-Pará”, de Dalcídio Jurandir, publicado em 1960, tornou-se um clássico para quem quer conhecer mais sobre as festividades de outubro na capital paraense e fez com que, mesmo mais de 60 anos depois, mais escritores se identifiquem e também contem seu ponto de vista da maior procissão religiosa do mundo.

Por ser parte de uma cultura de tão rica e miscigenada, o Círio se mescla com quae tudo, incluindo a cultura oriental, por exemplo, misturando as duas. Uma das escritoras paraenses que pensou nisso foi Phryscilla Rodrigues.

No livro “Yong-gi: compreendendo o amor" (Ed. Delirium, 2024), a protagonista, uma paraense que vence através dos estudos, volta para Belém nas férias e leva a mãe para assistir à transladação. Phryscila conta que este é um período que mexe com suas emoções: “Escrever sobre a emoção e a fé das pessoas durante este período me deixa muito inspirada, pois o Círio é uma parte nossa. Gosto de falar que o círio é parte da nossa personalidade belenense, você sendo religioso ou não”, diz.

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Enfatizar a cultura

Para Phryscila, o círio é uma parte fundamental de Belém e é impossível desvincular os dois: “Falar de Belém e não falar do círio é impossível para mim. Gosto de citar a festa e tudo o que acontece em volta dela como forma de enfatizar nossa cultura, pois, para mim, o círio também é cultural”, destaca a escritora.

Além das procissões e todo o momento religioso do círio, a parte divertida da festa também permeia as memórias afetivas dos que vem a capital para aproveitar o círio. Phryscila relembra com carinho, por exemplo, do parque de diversões no arraial de Nazaré: “Minha memória afetiva preferida é relacionada ao ITA durante a minha infância. Quando o comercial passava na televisão, eu já sabia - e sentia - o Círio chegando. Ficava ansiosa para ir ao ITA e ver o círio na TV. Depois que eu cresci, comecei a ir para a transladação com amigos e sempre lembro desses momentos, por isso coloquei no meu livro”, finaliza.

Phryscila Rodrigues é autora do livro "Yong-gi: compreendendo o amor".
📷 Phryscila Rodrigues é autora do livro "Yong-gi: compreendendo o amor". |(Arquivo pessoal)

Pará, Japão e romarias

Quem também retrata as culturas paraense e asiática em suas obras é Giuliana Murakami, que há 19 anos escreve romances, fantasia, crônicas e contos, como o livro “Flauta de Bambu”, ainda não publicado. Na história, os personagens precisam aproveitar a energia da cidade para atravessar portais e encontrar yokais (fantasmas ou entidades japonesas) e encantarias para reencontrarem uma amiga perdida.

Giuliana conta que essa energia que emana das pessoas durante o Círio é algo que transcende os rituais religiosos: “O Círio é mais do que um movimento religioso e de fé. É um evento que carrega uma bagagem cultural gigantesca, seja por meio das histórias que permeiam o aparecimento de Nossa Senhora de Nazaré e até mesmo pelo impacto social que faz da cidade de Belém uma das maiores do mundo a divulgar e promover uma procissão desta magnitude. Enquanto escritora é um momento de inspiração. Como parte de uma família com miscigenação religiosa fortíssima, acredito em energia e aquela que o Círio traz pode abrir portais para histórias”, enfatiza.

“Flauta de Bambu” não é o único livro de Giuliana que destaca o Círio de Nazaré. Em “A Aprendiz de Erveira" (Editora Folheando, 2023) e "Transmissão da Belém Subterrânea" (Jornal Jamburana, Conto), ela imagina uma Belém sem Círio de Nazaré e todos os impactos que isso pode causar nas pessoas e na cidade. “Como um evento marcante para nossa cidade, o Círio não poderia ficar de fora das minhas narrativas... Ainda mais quando amo falar das nossas comidas e quão delicioso é o cheiro de maniçoba e tucupi enquanto caminhamos pelas ruas de Belém em pleno outubro”, enfatiza a escritora.

Identidade

Giuliana também relembra que a procissão do segundo domingo, o círio ‘em si’, é o que lhe deixa profundamente inspirada para escrever histórias já que o momento é carregado de emoção: “O Círio em si me fez querer escrever sobre o evento porque não consigo imaginar Belém sem uma das marcas mais importantes de sua identidade, aliás, posso até imaginar, mas certamente a sociedade seria afetada, bem como de fato acaba sendo nas minhas histórias mais distópicas. É emocionante ver tantos fiéis unidos por seus propósitos e crendo na realização de suas promessas. Faz parte de cada cidadão belenense”, diz.

Giuliana Murakami é autora de "Flauta de Bambu" e outras obras.
📷 Giuliana Murakami é autora de "Flauta de Bambu" e outras obras. |(Arquivo pessoal)

Livros para conhecer a devoção paraense

Quem chega em Belém para conhecer o Círio de Nazaré pela primeira vez se impressiona com o tamanho da principal procissão, além de como os belenenses vivem quando chega a época dos festejos. Para quem mora aqui, a diferença do mês de outubro para os outros meses do ano é perceptível.

Por isso, muitos estudiosos buscam no Círio uma forma de entender mais da identidade paraense e a literatura é uma grande aliada nessa pesquisa. Para a antropóloga e professora de Sociologia Mariana Ximenes, autores se inspiram nas festas de Nazaré justamente por ser algo cultural e impressionante até para quem vive em Belém.

“Acredito que seja uma inspiração por ser um evento impressionante, em tamanho, quantidade de pessoas, e importância nas memórias individuais e coletivas. Além disso, é bastante dinâmico, e reflete as esferas mais importantes da sociedade. As preocupações, as tendências de comportamento, os conflitos, as principais pautas da sociedade são vistas no Círio, sejam elas políticas, econômicas, culturais e etc. Além disso, há alguns autores da Antropologia que apontam que em momentos de rituais a estrutura social se amplifica, e se torna mais viável compreender seu funcionamento, sua estrutura de poder, enfim, suas principais questões”, explica.

Ler para compreender

Em obras literárias, o Círio é retratado com muita diversidade. Alguns enfatizam elementos específicos como a Basílica de Nazaré, o carro dos milagres, a corda, a igreja da Sé e as próprias procissões do sábado (trasladação) e do domingo. O humor tem presença marcante, visto que também é um momento de muita alegria e celebração entre os paraenses. Isso ajuda antropólogos a entender mais da festa a partir dos textos escritos.

“A partir das obras literárias é possível compreender alguns dos aspectos relevantes do Círio, por exemplo, uma obra que traz elementos históricos, um recorte de um tempo passado e com isso conseguimos estabelecer comparativos, conseguimos estabelecer certo distanciamento e certa aproximação, o que nos permite uma outra interpretação, um outro contato, uma outra compreensão ou perspectiva do Círio de Nazaré”, diz Mariana.

Mesmo se tratando de uma festa religiosa, o Círio também é cultural e, para a antropóloga, um fato não exclui o outro já que nenhuma religião surgiu sem que houvesse envolto em um contexto cultural.

Muitas maneira de viver o Círio

“Tudo o que é religioso também é cultural. O cultural abrange outras esferas sociais que podem ser vividas de maneira mais ou menos ligadas a religião, como rituais que envolvem o comer compartilhado (...). O Círio envolve muitas esferas sociais, como cultura alimentar, questões políticas, econômicas, artísticas, entre outras, como a própria vivência da cidade que o Círio de Nazaré de Belém proporciona. Além disso, há muitos Círios, muitas maneiras de vivê-lo, podendo ser mais ou menos contrito ou festivo, o que não necessariamente afasta o religioso e nem o aproxima dele”, conclui Mariana.

Mariana Ximenes é antropóloga e pesquisa sobre o Círio de Nazaré.
📷 Mariana Ximenes é antropóloga e pesquisa sobre o Círio de Nazaré. |(Arquivo pessoal)

Leia trechos de livros com referência ao Círio:

“Yong-Gi: compreendendo o amor”:

"Em outubro, eu e Sohui voltamos para a minha cidade. O clima era outro, bem diferente de junho: as ruas estavam enfeitadas com muitas coisas relacionadas a Nossa Senhora de Nazaré e a cidade cheirava a maniçoba. [...] Meses antes eu havia conseguido alugar a sacada de uma casa na avenida Nazaré, por onde a procissão passava.

Devo explicar que a prática de “alugar sacadas” para o Círio de Nazaré é comum. É quase como ficar em um camarote para assistir à procissão. Foi muito difícil guardar aquele segredo da mamãe, que sempre se emocionava ao ver pela televisão, mas consegui me segurar e, quando contei, na véspera do círio, ela me abraçou e chorou muito.

Apesar de não ser ligada à fé católica, sabia que tinha significado muito para ela, então eu fiquei muito feliz. Também pretendia aproveitar a oportunidade para mostrar a Sohui porque o Círio de Nazaré era considerado a maior festa católica do mundo”.

(Phryscila Rodrigues, 2024).

"Flauta de bambu":

"Enfim chegou a segunda semana de outubro, época do Círio de Nazaré. As ruas já estavam enfeitadas de barracas com fitinhas coloridas, artigos artesanais marajoaras, ramos de patchouli, cataventos e brinquedos de miriti.

O cheiro da cidade era uma mistura da acidez do tucupi e da maniva terrosa, indicando que já estavam preparando patos no caldo de tucupi e maniçoba. Tudo em homenagem à Nossa Senhora de Nazaré. A maioria dos lugares estava com trânsito congestionado por conta da quantidade de turistas que vinham passar a festividade por aqui.

(...) Minhas lembranças do Círio de Nazaré se resumiam a uma mesa cheia de maniçoba cozida durante sete dias, tacacá quentinho com camarão graúdo, gohan em cuias de cerâmica do Japão e shimeji frito na manteiga e shoyu. Uma gastronomia nipo-amazônica de qualidade e que eu ansiava sempre."

(Giuliana Murakami, 2024)

Círio nas obras clássicas

Os clássicos da Literatura feita por paraenses também abordam o Círio de Nazaré. Textos de escritores como Dalcídio Jurandir, Eneida de Moraes e Benedicto Monteiro também contém descrições e fabulações acerca da tradição paraense que toma as ruas de Belém em outubro. Cada um desses autores época registrou detalhes da fé, ritos e movimentação dos paraenses nas romarias, em suas obras. Confira alguns trechos de livros com menções à grande romaria mariana:

Belém do Grão Pará

“Na manhã do Círio, à janela, viu aquela massa meio infrene, numa espécie de carnaval devoto, tirando a Santa do seu bom sono na Sé, trazendo-a na Berlinda, como num carro de terça-feira gorda. Saiu descalço, com uma perna de cera que comprou por um súbito cinismo e atirou no carro dos milagres”.

Dalcídio Jurandir (1909-1969)

Promessa em azul e branco

“(...) Vestia apenas azul-claro e branco (...) Por quê? Por quê? Perguntei à minha mãe (...):

- Foi uma promessa. Seu pai andou mal, muito mal, quase morria e sua avó fez uma promessa a N. S.ª de Nazaré: se ele sarasse, se vivesse, você, que acabara de nascer - vestiria até os quinze anos, somente vestidos azul-claros e brancos”.

Eneida de Moraes (1904-1971)

Carro dos Milagres

"Olhe compadre, nem quero lhe contar a triste sina deste meu barco a vela feito de miriti. Eu trouxe ele, mas foi pra colocar no Carro dos Milagres. Promessa feita e jurada ao pé da imagem de Nossa Senhora do Retiro, na noite de lua cheia, três noites depois do medonho temporal. (...) Só este criado seu escapou são e salvo por obra e graça de Deus e Nossa Senhora de Nazaré".

Benedicto Monteiro (1924-2008)

Círio de Nazaré

Segundo o site oficial do evento, o Círio é uma manifestação de fé e devoção à Nossa Senhora de Nazaré, realizada há mais de 200 anos em Belém. Atualmente, a festa católica foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial pelo Iphan e declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO.

“A história do Círio começa em 1700 com o achado da Imagem de Nossa Senhora de Nazaré pelo Caboclo Plácido, às margens de um riacho localizado próximo de onde hoje se ergue a Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré”, diz o site.

A devoção à Nazaré cresceu e, em 1793, aconteceu a primeira procissão em homenagem à Padroeira dos paraenses. Desde então, o Círio é realizado todos os anos, reunindo sempre um número maior de fiéis, hoje estimado entre 2 milhões e 2,5 milhões de pessoas pelas ruas da capital paraense.

Procissão do segundo domingo de outubro leva mar de gente às ruas de Belém
📷 Procissão do segundo domingo de outubro leva mar de gente às ruas de Belém |Arquivo - Wagner Santana/Diário do Pará

A Festividade ocorre em outubro com a realização do Círio e de outras 12 procissões, como a Trasladação, a Romaria Rodoviária, a Romaria Fluvial, o Círio das Crianças e o Recírio, dentre outras. Durante toda a quinzena festiva, também há extensa programação de eventos: missas, vigílias de oração, o Arraial de Nazaré, o Círio Musical e a descida da Imagem do Achado, do Glória para o Altar da Basílica Santuário, onde fica durante os quinze dias de festa para visitação.

Equipe Dol Especiais:

  • Laura Vasconcelos é reporter do portal Dol, jornalista formada pela Universidade da Amazônia (Unama), nascida em Belém do Pará. É também autora de dois livros de crônicas: "Fugacidade dos dias" (2020) e "A distância" (2022).
  • Anderson Araújo é editor e coordenador dos conteúdos especiais do Dol. Formado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2004, e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto (Portugal), em 2022. É também autor de dois livros de contos e crônicas publicados em 2013 e 2023, respectivamente.
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