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ANIMALIDADES

Já ouviu falar em zooliteratura? Entenda!

Pesquisadora mostra que presença dos animais na ficção só aumenta

Imagem ilustrativa da notícia Já ouviu falar em zooliteratura? Entenda! camera Ana Paula Pacheco transformou um pangolim e um morcego em personagens de “Pandora” | Pablo Saborido

Não é de hoje que os bois tomam a palavra na literatura brasileira. “O homem é um bicho esmochado, que não devia haver”, diz um deles no conto “Conversa de bois” (1946), de Guimarães Rosa. No poema “O boi vê os homens” (1951), de Carlos Drummond de Andrade, o quadrúpede nota que, “no rastro da tristeza”, os humanos “chegam à crueldade”. Em “Onde pastam os minotauros” (Todavia), novo romance de Joca Reiners Terron, um coro de bois lamenta a vida de gado dos homens: “Não parecem saber o que fazem aqui ou o que é a felicidade”.

No ensaio “Animalidades” (Instante), a escritora e crítica literária Maria Esther Maciel mostra que a presença da bicharada na ficção só aumenta. Não faltam exemplos: da felina que discursa com ferocidade em “O som do rugido da onça” (Companhia das Letras), de Micheliny Verunschk, ao pangolim de “Pandora” (Fósforo), de Ana Paula Pacheco, que não só fala como é mais machista que muito homem. Tem até bicho narrando a própria biografia, como em “Memórias de um urso-polar” (Todavia), da japonesa Yoko Tawada.

Tanto é que, de uns anos para cá, surgiram termos como zooliteratura (obras literárias sobre animais), zoopoética (estudo teórico dessas obras) e ecocrítica (estudo das relações entre literatura e meio ambiente).

A cachorrinha Baleia é personagem central em “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, que ganhou versão para o cinema no clássico de Nelson Pereira dos Santos.
📷 A cachorrinha Baleia é personagem central em “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, que ganhou versão para o cinema no clássico de Nelson Pereira dos Santos. |REPRODUÇÃO/IMS

“Desde a Antiguidade, os animais eram usados como alegorias, metáforas dos vícios e virtudes humanos. A partir dos séculos 19 e 20, vários autores abriram espaço para o protagonismo dos bichos. Inclusive brasileiros, como Machado de Assis, Clarice Lispector e Hilda Hilst”, explica Maciel, que também é autora de “O animal escrito” e “Literatura e animalidade”. “Agora, com a catástrofe ecológica e o questionamento da soberania do humano sobre outras espécies, observamos a difusão da animalidade na literatura”, completa.

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O romance de Terron se passa em um frigorífico especializado no abate de animais de acordo com preceitos muçulmanos. Lá, trabalham Crente e Cão. O primeiro recebeu o apelido após abraçar a fé evangélica. É viúvo e teme perder a filha para a mesma doença que levou sua esposa. Já Cão é um ex-presidiário. Parece bicho, é chamado de “meu animal” pela companheira, Lucy Fuerza, embora tenha perdido a potência sexual.

Aliás, filósofos contribuíram para negar protagonismo literário aos animais. René Descartes (1596-1650) aprofundou a cisão entre humanidade e animalidade ao pregar que a razão era a faculdade suprema da existência.

Maria Esther Maciel explica que o tratamento dado aos bichos só mudou após a publicação dos estudos do inglês Charles Darwin (1809-1882), autor de “A origem das espécies”. O naturalista estendeu aos animais faculdades como inteligência, memória, humor, capacidade de sentir emoções complexas, de associar ideias e até autoconsciência. A partir daí, os bichos passaram a protagonizar ficções de autores como Tolstói (“Kholstomér, a história de um cavalo”), Virginia Woolf (“Flush: memórias de um cão”) e Franz Kafka (“Investigações de um cão”).

Uma ferramenta para investigar subjetividade de outras espécies

A inclusão da bicharada na literatura, diz Maciel, contribui para estimular a empatia entre as espécies. Ela nota que cada vez mais cientistas têm incorporado recursos literários ao escrever sobre animais, como Vinciane Despret (“Autobiografia de um polvo”) e Bill François (“Eloquência da sardinha”).

Para Ana Paula Pacheco, a exploração literária da alteridade animal surgiu como uma oportunidade para falar do “estranhamento cotidiano” vivido na pandemia. Não à toa, ela escolheu um pangolim e um morcego (espécies responsabilizadas pela propagação do coronavírus) como personagens de “Pandora”, lançado no início do ano. E eles não são personagens quaisquer, mas respectivamente o segundo e o terceiro marido da narradora, Ana (que antes fora casada com uma ativista morta por covid-19). “Senti muito nojo e me apaixonei”, diz ela sobre o pangolim.

Ana também desconfia que seu gato, Felício, esteja metido numa conspiração contra ela. Professora universitária, ela seleciona contos para um curso, todos protagonizados por animais: um touro, um urso e um boto fêmea que sonha com uma cirurgia de redução dos lábios vaginais.

A narradora também não economiza nas metáforas animais (nem nas referências à cultura clássica): saem coelhos de cartolas, gatos são desconfiados como Ulisses, vencer um obstáculo é como ver o javali da Caledônia (derrotado por Hércules) tombar morto.]

Turista Aprendiz

Ana Paula Pacheco empresta uma imagem de Mário de Andrade para explicar os desafios de escrever sobre os animais: a do turista aprendiz.

“Amo os bichos e passeio por esse lugar que não é meu como alguém que tenta aprender, mas sem utilitarismo. O convívio com os animais, tão ameaçados quanto o próprio planeta, nos permite colocar questões sobre o universo humano, dominado pela racionalidade, e sobre como o chamado progresso sempre recai em mitos”, afirma a autora, que dá o exemplo da cachorrinha Baleia, de “Vidas secas”, romance de Graciliano Ramos. “Baleia desponta com a força da inteligência contra um narrador que só enxerga a alteridade em determinadas molduras”.

Joca Reiners Terron concorda que os bichos nos ajudam a abordar questões que afetam tanto a nós quanto a eles, como a “higienização da morte” e as condições de vida nos frigoríficos.

“Nossa sociedade camuflou a morte, inclusive a dos animais. Nossos entes queridos morrem longe de nós, os crematórios de bichos domésticos têm se multiplicado e até a carne do supermercado é embalada de modo a excluir a morte”, diz ele. “Também não se fala sobre a dor moral e os efeitos psicológicos (inclusive nos humanos) do abate industrial de animais que são completamente objetificados, privados de um ciclo de vida saudável”.

Maria Esther Maciel acrescenta que a zooliteratura não é só um pretexto para discutir questões demasiado humanas, mas também uma ferramenta de investigação das subjetividade de outras espécies.

“É uma troca que passa pela sensibilidade e pela imaginação. Compartilhamos experiências com os animais. Não só com os domésticos. Mesmo os animais enjaulados, que perderam sua autonomia, também são contaminados pelo contato humano. Com os animais, aprendemos até mesmo a nos reconfigurar como humanos”, explica a autora.

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