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Velas acesas no igarapé para duas meninas em Santa Izabel

O jornalista Anderson Araújo traz uma memória dos tempos de repórter. Atenção: o texto contém cenas fortes não recomendável para pessoas sensíveis. Leia e compartilhe.

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Imagem ilustrativa da notícia Velas acesas no igarapé para duas meninas em Santa Izabel camera Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

Cheguei na frente do prédio e o cheiro já era perceptível. Era o fim do caso e meu primeiro contato direto com essa cobertura. Havia dez dias, os jornais começaram a dar destaque para a história. Primeiro com a comunidade inteira mobilizada. Homens e mulheres saíram às buscas pelas matas, rios e igarapés da região. Uma vigília sofrida de gente pobre, de todas as idades, desde que as meninas sumiram, naquele vilarejo em Santa Izabel do Pará.

A mãe estampou a capa dos impressos quando o assunto ainda era um mistério. Os jornalísticos não perderiam o caso por nada nesse mundo: um duplo desaparecimento de crianças, uma mãe em desespero, uma comunidade assustada numa região rural e paupérrima ao alcance de qualquer equipe de reportagem e da curiosidade mórbida da capital, que se alimentava do esdrúxulo, do bizarro e da sede por linchamentos, como na idade média, com direito a tochas e a gritos de horror. Uma tragédia completa.

Na imagem, a mulher sustentava olheiras profundas, a magreza pronunciada, rugas ainda mais evidentes de uma vida sem glória nenhuma, as mãos ossudas. Acho que não tinha mais do que 40 anos, mas, parecia uma centenária. O olhar fixo das mães que sabem mais do que todos sobre os próprios filhos e, o pior de tudo, têm consciência acerca da totalidade da angústia a que estão submersas.

O registro fotográfico a capitou à beira de um igarapé a pousar, na corrente d’água, uma cuia que levava no interior uma vela acesa. Outras candeias já flutuavam no pequeno rio. Era noite alta e a luz das chamas forçava algo de fantasmagórico para a notícia, que já era trágica, independente de qualquer cenário. O jornalismo nunca decepciona quando o assunto é pisotear a dor alheia, principalmente, dos que não tem proteção nem força alguma para se defender ou revidar.

O gesto era um ritual, uma crendice, uma súplica. Há dias a mulher e os vizinhos faziam buscas por conta própria para achar as garotas de 7 e 10 anos. A polícia e demais autoridades se empenharam no caso, sobre tudo, pela repercussão enorme feita pela imprensa. Mas, enquanto a procura oficial se atinha ao horário comercial, a população e a família se mantinham incansáveis para solucionar o sumiço. Tanto que, como último recurso mais acessível, recorreram aos espíritos da floresta na empreitada.

Os lumes eram um pedido de socorro às mães d’água para indicar onde estavam as benditas crianças. Afinal, as entidades que mandavam nas águas doces também eram mães e entenderiam aquela agonia. As iaras devolveriam as meninas? Teriam as pequenas entrado na mata para sempre ao fugir de um caipora? Estariam reféns de um encantado maligno, como o jurupari? Viraram comida para o ciclope mapinguari? Teriam sido puxadas para o fundo dos rios por um boto diabólico? Ou morrido afogadas numa brincadeira qualquer e levadas pela correnteza?

Todas essas hipóteses fora e dentro do mundo real foram levantadas e comentadas em cada sala e cozinha da pequena vila sob as lâmpadas incandescentes pelos que não achavam explicação nenhuma para o desaparecimento e mantinham a esperança de encontrá-las ainda sãs e a salvo de todo mal.

Até que prenderam um homem.

Um caboclo de pele clara de seus 50 anos, problemas com álcool, a fala difícil, olhos vermelhos, a musculatura bem definida, apesar de franzino, de quem trabalhou como braçal na juventude, cabelos encaracolados já embranquecidos pela idade. Era vizinho da família das meninas. O acusado negou e deu declarações confusas à imprensa sobre o que sabia. A prisão temporária foi transformada em preventiva. Estava agora à disposição da Justiça. Depois de uns dias no xadrez, ele confessou pra, em seguida, negar novamente e apresentar uma terceira versão.

Coincidência ou não, depois das velas no igarapé, não demorou, um pescador a bordo de uma canoa viu um amontoado de urubus às margens de um fio d’água de difícil acesso. A busca havia terminado.

Desde o início das notícias, era a primeira vez que estava responsável por escrever sobre o caso. Assim, fomos pela BR e chegamos, Marcelo, o fotógrafo, e eu à sede da polícia. Por sorte, demos de cara com um investigador, que mastigava um pedaço de pão com manteiga e segurava um copo de café. Alguma novidade sobre as meninas? Ele apontou a direção com os beiços e informou sem interesse nenhum:

_ Parece que tem alguma coisa lá no IML, mas não sei direito.

Entramos no carro e partimos para o necrotério, que não era tão longe. Por sorte ou azar, chegamos primeiro ao local. De fora, o cheiro forte me já cegou. Era um edifício novo, recém inaugurado. Longe da ideia de morgue obscura e suja, era amplo e asseado, luminoso, como um palco bem construído para o espetáculo da morte. Entramos sem muita cerimônia. Vazio. Marcelo estranhou, de máquina em punho.

_ Vou procurar alguém pra pegar alguma informação.

Uma faxineira apareceu.

_ ah, moço, eles foram tudo pra rua por causa desse caso. Não sei o que foram fazer. Mas sei que chegou coisa aí.

A mulher foi embora e Marcelo voltou, logo em seguida. Pálido, os olhos verdes arregalados, o bigode molhado de suor, trêmulo, respiração ruim.

_ Eu vi.

Ele apontou um vão, como um pátio aberto, sem cobertura para que luz solar iluminasse tudo, cuja entrada maior ficava por trás da recepção, se a memória não me falha. Percebi que havia outro acesso e inadvertidamente me dirigi até ele, enquanto ignorava meus sentidos.

Dei de cara com a cena.

Desviei os olhos o mais rápido que pude, mas vi além do que precisava ver. Meu café da manhã veio até a garganta e tive que ir para fora do prédio para respirar. Em seguida, as outras aves de rapina, meus colegas de imprensa, se aglomeraram diante do edifício, já fechado aos jornalistas, depois que os responsáveis chegaram e perceberam a presença indesejada do meu parceiro fotógrafo.

Saímos depois da coletiva improvisada. Era a manchete do dia seguinte.

_ Tu não vais passar essas fotos pra edição, não é?

_Não. Fiz no impulso, só pra registro. Quer ver?

_ Porra, Marcelo.

Voltamos calados pra redação, em uma hora de viagem. Estava impregnado da sensação de derrota, de perda, de algo espatifado dentro do prédio, dentro de mim, como um fracasso perpétuo, um dano que forja pinturas que jamais se apagam na cabeça dos que testemunham essas ruindades.

Pensei nas velas acesas e na luz no rosto da mãe naquela fotografia. Como estaria agora? Teria alguma força? As entidades responderam, afinal, os apelos da mulher. Vi a pequeneza das notícias, no quase nada que era a função de relatar um dia horrível para preencher espaço num papel que, no dia seguinte, forraria carros de madame ou embrulharia peixe na feira. De como essa história seria mais uma a ser esquecida entre tantas piores que viriam a acontecer — o tempo, após tantos anos, provou que essa era uma previsão certeira.

Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do Dol. Ele escreve às sextas-feiras.

Leia mais contos e crônicas do autor no blog Daqui te Escrevo.

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