Seu Zé morreu. Estava doente fazia um tempo. O nome mesmo era José. Não estou inventando para parecer alguém do povo, um bom brasileiro, como tantos Zés por aí, embora ele se encaixasse nessa descrição. Mas era José. Ou seu Zé da Taberna. Ou Sabiá, pássaro pequeno, frágil e benfazejo, tantas vezes lembrado e querido pelo nosso cancioneiro. Talvez fosse a ave a melhor representação daquele homenzinho de riso plácido que me atendia por trás do balcão. Com a morte de Seu Zé, como eu preferia chama-lo, pode até não parecer, porém, se esfarela um bom naco da memória de um lugar da cidade que vive hoje franco aniquilamento.
Não faz tempo ouvi de um doutor, daqueles de verdade, que a minha querida Pedreira era “meio sem identidade”. Aquilo me abateu. Logo ele, catedrático renomado, tão afeito a revisitar identidades da capital, tão ilustrado quanto à parte nobre belenense, desprezou meu lugarzinho, essa quase ex-baixada em vias de subir para divisão dos bairros emergentes. O que aconteceu com o bairro do Samba e do Amor para que homem tão sabido começasse a olhá-lo assim, como se fosse um corpo sem rosto?
Fiquei surpreso, confesso, porque a mim, cada esquina ainda tem muito de história dessa parte da cidade que tem no apelido dois conceitos tão caros e tão definidores da humanidade: a arte e o sentimento. Ao menos era, até o vaticínio do doutor, a Pedreira do samba, pela nossa profunda e gloriosa história com a música e os grandes carnavais de 1930 a 1950, intimamente ligada com religiosidade de matriz africana, expressa em terreiros seculares espalhados em ruas de terra; e do amor por nossa vocação para as artes românticas fincadas ali pelos arredores da Pedro Miranda desde as velhas casas de tolerância que transformaram nosso pedaço em um mítico e real Red Light District amazônico, onde zanzavam jornalistas, intelectuais e artistas, no tempo em que jornalistas, intelectuais e artistas andavam juntos por aí, confundidos, sonhando, sofrendo e pensando a cidade.
Essa Pedreira ficou em algum lugar, que eu, nascido nela já no fim dos anos 1970, não cheguei a vivê-la, embora tenha crescido nesse arrabalde cheio de frieira e perebas da lama que marcou o bairro nas décadas de 1980 e 1990, aurora da minha vida.
É desse tempo que me lembro de Seu Zé e sua taberna pintada de azul, na Travessa Alferes Costas. Dia antes de saber se sua morte, passei por lá, a bordo de um Uber. E o pequeno comércio estava fechado e cercado de lojas de autopeças, num caos estranho e muito específico de fragmentos de automóveis que se estabeleceu por ali nos últimos anos.
Me lembrei dele, Seu Zé, e dos personagens que ali passaram pela taberna, como eu próprio, ainda criança, indo comprar o pão com aquele homem franzino que estava sempre com um sorriso no rosto. Meu pai, quando ainda andava, se abancava na mercearia, pedia uma Coca-Cola e jogava conversa fora. Lá se sabia quem tinha nascido, morrido, ido embora, empobrecido ou enricado, entre um freguês e outro.
No entorno da modesta lojinha de Seu Zé, viviam antigos moradores icônicos, que não existem mais: a centenária velha Felipa, Dona Dindinha e suas ervas, a Bolão e seu jeitão único, o casal Seu Favacho e dona Nilza com suas bonecas de pano, o prestação Zé Félix e uma ruma de nordestinos que viam no pequeno estabelecimento um ancoradouro, porque seu Zé era também do Sertão como eles, um imigrante que escolheu a Pedreira para viver e trabalhar honestamente até o fim de seus dias, assim como ocorreu.
Quando os grandes supermercados ainda eram coisa de gente com mais dinheiro e não tinham devastado as vendinhas das periferias da cidade, era a Taberna do Seu Zé e do concorrente, Seu Olavo, que acudiam os moradores para as compras, naquelas medidas singulares adequadas à nossa realidade: uma quarta de café, meio pão massa fina, dois dedos de mortadela, três ovos, uma dose de pinga, um cigarro a retalho. Economia e cotidiano se cruzavam naqueles balcões comandados por aqueles comerciantes do século passado.
Dizer que quando morre um Seu Zé morre um pedaço da cidade não se trata de romantizar a pobreza ou não aceitar que as coisas mudam. Afinal, todo mundo almeja a prosperidade, quer socializar a boa vida e, obviamente, tudo muda irremediavelmente o tempo todo. Não, não se trata dessa ilusão ingênua, embora me seja muito sedutora.
O que sustento é que, quando morre um dos nossos antigos, testemunha da grande e da pequena história, se partem sem reparo conexões com nosso passado, nossa história se fragiliza e é cada vez mais difícil compreender que aquelas mudanças espaciais e a presença de novos moradores, sem relação com a origem do bairro, de alguma forma, deitam fora nossa memória coletiva.
A taberna permanece ali, já sem o Seu Zé. Não longe de lá, brotou um pequeno prédio residencial para aluguel de pequenos apartamentos. Em breve, a nova construção deve selar o beco entre minha antiga rua e Alferes Costas, colocando fim na comunicação entre a minha área e a vizinhança direta e mais próxima do falecido tarbeneiro. É só mais uma modificação de um bairro hoje tomado por grandes edifícios, restaurantes, barbearias, padarias elegantes e bares onde a classe média bebe sua cerveja artesanal e se diverte em noites ruidosas e não mais acessíveis a quem mora por lá.
Os tempos estão mudando, como diz a canção de Bob Dylan. E eu, outrora pequeno freguês do Sabiá, ando pelo lugar em que nasci sem reconhecer muita coisa e ainda pensando sobre identidade da Pedreira e, consequentemente, acerca da minha própria. Talvez eu esteja apenas fora de compasso sem aceitar que a força da grana ergue e destrói coisas belas e nos apresenta novas histórias para soterrar as velhas. Penso em gentrificação, palavra feia com um significado horrível.
Talvez, o doutor tenha toda razão. Não pelo jeito certo, não por conhecer Belém além da capital mítica entre São Brás e a Cidade Velha, uma cidade que borra outras geografias para afirmar uma história hegemônica com prédios suntuosos, famílias de renome e a grande arte, a Arte com maiúscula, dos grandes e elegantes palcos. Talvez estejamos perdendo, de fato, nossa boa e negra cara de quem sambava e batucava até o sol raiar e amava sem pudor e sem razão naquele bairro alagadiço, de boas histórias e estrondosos carnavais.
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