O almoço foi escasso, me lembro muito bem. Quando a empregada da casa de Eli pôs à mesa com aquelas cumbiquinhas com quase nada dentro, o Alan arregalou os olhos. Sem trava alguma, ele reclamou da quantidade do picadinho, da miséria do feijão, do arroz de pinto e da porção minúscula da saladazinha. Éramos pobres, tampouco tínhamos serviçais, mas em nossas casas havia a fartura, do básico, porém em profusão. Era tudo bem servido sempre, todo santo dia, nas horas antecedidas pelo cheiro que preenchia a casa desde a cozinha. Não expressei meu incômodo diante da escassez por vergonha e alguma educação, embora tenha lamentado o mau bocado que preencheu meu prato.
Cria que estávamos em uma casa de classe média, porque Eli era uma das muitas crianças que estudavam em colégios particulares e sofreram o baque do confisco da poupança dos pais, em 1990, e da crise econômica da era Collor. Dois anos depois , ele e o irmão Edclei estavam metidos em um uniforme de malha da rede municipal, às sete horas, encostados no muro em fila para entrar na escola miserável que eu já conhecia muito bem.
Nem de longe os dois tinham caras de meninos abastados. Eram tão magros, macilentos, rotos, tortos e feios quanto eu. Parece que o pai trabalhava em um bom cargo na Celpa, se não me falha a memória. Não importa. O que me chamava atenção é que havia esses indicadores de uma vida melhor do que a nossa: a experiência da educação privada e uma bonita casa de alvenaria na Cidade Nova. Diferentes de nós, Alan e eu, moradores de passagens sem pavimentação e saneamento em arrabaldes muito piores.
Abro parênteses para falar que Alan, sim, parecia um menino abastado. Era bonito o danado. Não parecia sofrer. Dava-se bem nas disciplinas todas e cultivava inteligência matemática e um espírito competitivo. Seria médico, dizia. Tinha uma pele corada, não era gordo nem magro demais. Chamava atenção das meninas pelo sorriso de dentões semi-alinhados e olhos vivos, brilhantes, escuros, de cílios alongados, como os da Margarida do Pato Donald. Acima do olhar de faísca, possuía belas sobrancelhas negras, como a de um ator de tevê turco. Nunca foi tímido.
Na verdade, ele era um menino com gestos delicados que falava alto demais e sem muita coordenação, feito uma metralhadora. Meu pai o comparou com o Zé Porrinha, um prestação cearense que falava aos berros com péssima dicção — era um exagero. Alan era chamado de Bebeto porque era bom de bola e vivia com uma camisa de número 7 do Vasco, o do atacante tetra campeão de 1994. Ficamos amigos depois de uma briga, a qual não me recordo o motivo. Depois dessa pequena rusga, sem maiores consequências, nunca mais nos largamos. Tínhamos muitas afinidades e nos amávamos como irmãos. Aprendemos a tocar violão, estudamos e fomos a carnavais juntos. Até hoje, se aparecer na casa dele, dona Mirtes, mãe do agora doutor Alan, me trata como filho, de tão amorosa que me recebe.
Alan era um raio de luz. Já Eli e eu, duas sombras raquíticas. Com fome, então, parecia pior. Desse encontro de quase 30 anos, assentou na lembrança o estômago vazio e o coração cheio de pavor no retorno para casa.
Como era um trabalho escolar, precisamos findar a tarefa no mesmo dia e terminamos muito tarde para os padrões de meninos de 13 anos. Tudo se acabou pelas seis e meia, quase escuro, e partimos já com medo de assaltos ou ataques pelas ruas que não conhecíamos. A mim, a volta incluía dois ônibus e essa despesa já era demais, mesmo com a meia-passagem. Uma merenda, um completo, uma coxinha que fosse, nem pensar.
Havia passado muito da minha hora. Chegamos de manhã e a casa de Eli ainda estava fechada e cheirava a gente adormecida. O trabalho levou o dia inteiro e não havia como avisar a minha família. Minha casa só foi ter telefone muito anos depois e o celular ainda era restrito a operações militares e filmes de ficção científica. Se alguém dissesse que um dia os smartphones seriam acessórios comuns a adolescentes naquele tempo, receberia uma gargalhada como resposta. Aquilo era arma do 007, porra.
Rir era tudo que não conseguia fazer na saída da Cidade Nova. Temia pelo horário e as consequências da demora. Levar uma esculhambação era o menor dos problemas que enfrentaria ao chegar à noite em casa. Roí o resto das minhas unhas que me sobrou dentro do coletivo, em pé, ao lado de Alan, que continuava tranquilo e infalível, como Bruce Lee, com seus lindos olhos com belos cílios e bastas sobrancelhas turcas. A calmaria do meu amigo me deixou irritado. Parecia pouco caso com a minha angústia, filho da puta.
Ao chegar na BR-316, o trânsito parou. Só podia ser a chuva. Sabe como são os motoristas. Qualquer chuvisco desaprendiam a dirigir e pisavam mais lento no acelerador. Com mau costume dos temporais, geravam pelo tédio e pela burrice os engarrafamentos. Quase uma hora depois, o mar de lanternas vermelhas dos carros se intensificou e alguém falou na parte da frente do ônibus:
_ Alguém foi atropelado!
E a frase ecoou por outras bocas:
_Alguém foi atropelado! Alguém foi atropelado!
E a informação cresceu segundos depois:
_ Uma mulher foi atropelada.
_ uma mulher?
_ Atropelada?
_ Uma mulher atropelada.
E, de atropelo em atropelo, meu coração parou por um segundo, como quem pressente, como quem toma conhecimento de que foi atingido pelo destino.
_ uma mulher morena está na pista. Morreu. — contou alguém que saiu do veículo e chegou até o local, como um repórter de rua, e voltou para contar a tragédia aos demais presos dentro do ônibus naquele congestionamento diabólico.
Fiquei em choque e minha cabeça desenhou toda a cena: minha mãe saiu de casa desesperada atrás de mim. Ela não sabia o endereço, tomou um ônibus até o Entroncamento para ir começar as buscas em todas as Cidades Novas (creio que eram oito) para achar o filho perdido. Mas as buscas foram interrompidas abruptamente. A desgraça a achou primeiro.
Um acidente. Um carro. Um caminhão. Outro ônibus. Todos em alta velocidade. Um maníaco ao volante, um psicopata assassino, um sociopata das ruas. Minha mãe morta no asfalto. Sangue, traumatismo, trauma. Meu deus, meu deus! Eu ainda acreditava em deus e o clamava.
Barulho do toró, rugido dos motores, buzinas nervosas, o ônibus que me levava mortificado avançou lentamente e as versões sobre o ocorrido se multiplicaram rápido naquele universo abafado de janelas fechadas e rostos desconhecidos. O cobrador se manteve intocável, com seu uniforme de camisa de botões azul e calça preta, e conversava com um sorriso de canto de boca com uma moça muito interessada no palavrório dele — cobradores sempre atraem muitas paixões.
Nos bancos, as pessoas contavam detalhes que nem sabiam, porque se a realidade não está revelada qualquer um pode criá-la. Inclusive eu. Não quis contar a Alan minha certeza. Era minha mãe jogava ali fora sob a chuva e o olhar dos curiosos até chegar a polícia e o rabecão para recolhê-la. Estava calado e com os olhos mais tristes ainda. A tempestade eram minhas lágrimas, como num clipe clichê de música ruim.
O ônibus passou longe do sinistro, ocorrido na outra pista, no sentido Belém-Ananindeua. O bolo de gente lá fora, tomados de curiosidade mórbida, não permitia ver o cadáver ou evitei olhar. Segurei o choro ao máximo e ignorei Alan, que espichou o pescoço fora da janela imprudentemente para tentar ver a vítima estirada no asfalto.
Ao passar do local da morte, o trânsito fluiu. Descemos em frente ao Palácio Lauro Sodré, quilômetros depois. Alan atravessou a rua rumo ao Curió-Utinga e fiquei com minha aflição e meu pesadelo no ponto de ônibus à espera do Aero Club, mais um ônibus para chegar em casa. Até que não demorou. Estava exausto, faminto e encharcado. Minhas sandálias patinavam embaixo dos meus pés. Meu material escolar também ensopou.
Quando entrei na minha rua tomada de lama por causa do aguaceiro entrei em pânico, porque das duas uma: ou a notícia funesta já havia chegado por lá ou eu teria que contar tudo o que vi para os que nem imaginavam aquela perda precoce. Minha mãe ainda tinha apenas 30 anos em 1992. Nunca imaginei que fosse tão jovem, porque minha referência de idades era de uma criança. Ainda assim não era hora de morrer. As mães não devem morrer nunca, menos ainda quando se é um garoto que saiu cedo do lar apenas para cumprir uma missão da escola.
Entrei em casa devastado e pronto para dizer a todos que ela havia sido atropelada e o culpado era eu. Eu deveria ter voltado mais cedo, eu deveria ter dado um jeito de avisar, eu poderia ter ligado pro orelhão da minha rua, que eu nem sabia o número, e pedido a um vizinho que a chamasse, eu deveria. Como pude? Eu, eu, eu, eu. Culpado para sempre. Matei minha mãe. Matei. Se ela não saísse desesperada atrás de mim, jamais teria sido colhida por um carro e morreria sob a tempestade e ficaria deitada no asfalto sem socorro feito indigente.
_ Onde tu te meteste, menino? Tu tás ficando doido? Vou te comer de porrada hoje, seu moleque! Pensei que estava morto, seu desgraçado!
Era ela. Viva e furiosa com um cinto na mão.
Nunca fiquei tão aliviado diante de uma ameaça de surra.
Minha mãe nem me bateu e deixou eu explicar a situação. Ela nunca soube que por quase três horas esteve falecida na rodovia depois de um atropelamento. Mais calma por eu estar vivo também, ofereceu-me um prato de comida quente e abarrotado de carne, arroz, feijão e tomates. É assim que se serve, Eli.
Antes, mandou-me tomar banho para não gripar, no que fui bem contrariado, já esquecido da minha fase momentânea como órfão.
Realmente, não gripei. As mães sabem das coisas. Mas inventei uma febre para ficar em casa no dia seguinte e viver meu quase luto e minha celebração por dona Clarisse continuar ali comigo.
Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL. Ele escreve às sextas-feiras.
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