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DAQUI TE ESCREVO

A última vez que me apaixonei foi exatamente assim

É sexta-feira, dia de Daqui te Escrevo no DOL. Em tempos difíceis, um conto sobre a paixão escrita pelo jornalista e escritor Anderson Araújo. Leia e compartilhe!

Imagem ilustrativa da notícia A última vez que me apaixonei foi exatamente assim camera Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

Foi como a primeira vez. Não, não foi. Foi inédito. Inédito. Mas já havia usado essa palavra tão querida por mim em outras ocasiões. Ainda assim era algo absolutamente novo, embora conhecesse muito bem todo o inferno desse estado de espírito. Um dormir e acordar fixado na mesma criatura que, pra mim, naquele momento, naquela configuração da vida, naquele entendimento temporário do que é bonito, era perfeita.

Ela estava de vestido na primeira vez que a vi. Um vestido azul. Ou havia flores nele? Talvez fosse um clichê vermelho em movimento, um tubinho preto de matar… Honestamente, não garanto nada. Não me cobre a este altura de um campeonato que já perdi. Alguém recorda o momento exato desse tipo de acontecimento? Duvido muito. A paixão é um convencimento vagaroso a si mesmo. Quando não, é algo que, de tão fulminante, não se consegue absorver de todo e ela passa sem nome nem endereço, feito um trem sem governo.

De qualquer forma, naquele dia, estava ali. Física, táctil, sólida, tão real quanto um sonho. De padaria. Construída em mármore no meu pobre coração - se é que se fala em coração quando é sobre esses assuntos.

Tinha a pele translúcida, leitosa, fosca, reluzente feito uma lua cheia. Ou será que era de ouro-marrom, de cravo e canela, um rio barrento à noite, um mar revolto na luz de maio onde há verão? Não que isso importe. O que importa de verdade são os olhos. E como eram lindos. Feitos de vidro italiano, de puro mel das abelhas-rainhas, de jabuticaba, eram gatos no escuro, eram o sol no fim da madrugada, e tinham um lume que me pinicava, me ardia, me doía, me acorrentava. Ao redor dessas esferas astronômicas, pequenas rugas, pálpebras harmônicas, cílios de vento e na esclerótica alguma sombra de sofrimento, uma réstia de alegria da infância que ficou pendurada como uma remela eterna. Ou seria uma lágrima que petrificou?

Ah, não. Lembrei que ela passou por mim na rua. Ou terá sido no metrô? Ou sentou ao meu lado num ônibus? Ou meu eu pedestre para sempre a notou dentro de um carro na espera do sinal verde? Posso ter confundido. Talvez a tenha visto numa foto… no Facebook cercada da família, no Instagram numa praia multicolorida com um homem, que provavelmente deveria estar também apaixonado, talvez até mais do que eu. Duvido que tenha sido no Tik Tok. Isso não, mil vezes não. Se não me engano, ela me foi apresentada por um amigo em comum, numa mesa de bar ou na hora do almoço entre um turno e outro do trabalho ou no meio de uma feira livre numa barraca lotada de pupunhas. Não tenho muita certeza, mas me causou uma impressão sutil, que não identifiquei na hora, nada muito grave.

Tinha estatura mediana, quase alta, quase baixa. Ou nem isso, talvez fosse uma jogadora de vôlei ou ostentasse o tamanho de um duende. Os cabelos pareciam tingidos ou nunca tinham visto tinta alguma. Que me lembre não era careca, mas também não me pergunte de comprimento, que não saberia responder. Tinha um jeito de professora, arquiteta, enfermeira, jornalista, vendedora, pesquisadora de cidades perdidas, cientista em Física Quântica, vendedora de cosméticos, publicitária, puta, santa, ambulante, médica, advogada, recepcionista…

Sei que quando a vi não senti nenhum sobressalto. Foi um quase absolutamente nada. Nada estalou, nada congelou, a rotação da terra não se inverteu, tampouco ouvi sinos. Apenas registrei a figura primeiro no cérebro, depois em algum lugar muito fundo que não consigo determinar. Armazenei a mulher como quem fotografa pra ver depois. E foi o que fiz: só horas mais tarde, parei para apreciar aquela imagem na minha memória, cada detalhe físico e imaterial. E o que não sabia inventei, disso lembro muito bem, a cor da voz, os grunhidos durante o sono, os livros lidos por ela, os lugares onde esteve, os amores que a destruíram, as festas por onde dissipou parte da própria beleza, as escolhas políticas e discussões que teve, os embates particulares com Deus, as vicissitudes que guardava como gente, os desejos incontidos e os reprimidos que não revelava a ninguém, o que dela eu não concordaria, uma briga quase esquecida com a mãe, as tolas desilusões, seus cabelos brancos na velhice, como me feriria no futuro, como me enxergaria no presente, qual lugar eu teria em seu passado e até o jeito de se olhar no espelho pela manhã depois de acordar ao meu lado numa quarta-feira qualquer de humor instável simplesmente por ser brasileira. Isto me vem límpido na lembrança: era brasileiramente linda.

Quando decidi que estava apaixonado foi numa noite sem estrelas, romanticamente sem estrelas, porém caoticamente realista. Trancado na anarquia do quarto, a agonia me tomou por completo. Fazia muito barulho lá fora. Alguém ouvia uma música horrível em um volume altíssimo e se ouvia um martelar em um prego resistente em algum lugar não muito longe. Uma criança berrava na vizinhança, um casal se esgoelava em um cômodo abafado e cachorros uivavam em um quintal mórbido por ali. Ainda assim aquela imagem, a mulher inteira com dois olhos perturbadores e mãos que cabiam dentro das minhas mãos, e tudo que a consolidava como minha entidade escolhida, estava ali comigo. Ela, ou o que a paixão fomentava, vencia fácil a desordem, o transtorno, a realidade. E, por tudo, decidi que sim, era oficial: estava num estado alterado dos meus cinco sentidos e sofria da premência de tê-la, vê-la, comê-la, segurá-la, cheirá-la e ser devorado e regurgitado por ela.

Sem demora escrevi um poema ruim. Uma sequência de rimas fáceis, verbo com verbo, substantivo com substantivo, advérbio com advérbio. Um desastre ortográfico, gramatical e semântico, ainda que franco, desesperado e ridículo, como poemas desse gênero são. Foi o primeiro de muitos, que nunca a entregaria. Pra redimir minha vergonha, os últimos melhoraram muito e eram tão bonitos quanto uma cidade pequena no pé de uma montanha nas primeiras horas do dia. No entanto, queimei os que estavam em papel e deletei os do computador. Fiz questão de esquecer o conteúdo exato daquelas palavras.

Tudo já faz muitos anos, como qualquer coisa hoje em dia. Como podes perceber, tudo também carece de precisão, um oco, um quebra-cabeça com peças ausentes; é tudo uma grande mancha sem forma, como se a minha catarata afetasse também minha memória. Estou aqui, ainda no mesmo lugar, no mesmo incômodo dos barulhos externos, no mesmo caos de incertezas e não faço ideia por onde ela anda, que fim levou. Pelo ar que entra pela janela, sei que o firmamento se apagou e a essa hora está preto como asfalto. Não é sempre, nem sequer todos os dias, contudo, nessas horas, me vem essa última vez. Não é uma lembrança exatamente dela. Não tem nome, corpo ou voz. Não vibra numa frequência que eu reconheça. De olhos apagados, apenas sinto a brisa, o frescor de eucalipto e o tremor que me tomavam só de pensar naquela mulher, que há tempos já não sei de quem se trata.

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Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL. Escreve às sextas.

A crônica de hoje foi publicada originalmente no blog do autor, o Daqui te Escrevo.

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